Entrevista: os segredos do Nheengatu, a língua-legado do Brasil colonial

Falada por milhares de pessoas na Amazônia, o nheengatu respira e tem até bandas cantando no idioma.
amazonia mapa nheengatu
Ilustração de Paola Saliby

Em 2017, apresentei aqui na revista um artigo sobre Nheengatu, língua geral falada no Brasil até o século XVIII e iniciativa dos próprios jesuítas para consolidar um idioma único, combinando variações do tupi e do português europeu.

Para aprofundar essa conversa, entrevistamos o linguista Marcel Ávila, especialista em línguas indígenas. Atualmente, ele trabalha em campo – na Amazônia – em um dicionário Nheengatu-Português para seu projeto de doutorado na Universidade de São Paulo.

Ah, um detalhe: a entrevista, feita por áudio via Whatsapp, foi editada para melhorar a compreensão e apresentar um texto mais curto, mas sem alteração de sentido.

 

Gostaria que você falasse um pouco da formação e do surgimento do Nheengatu. As informações disponíveis são controversas – como de fato o idioma se formou?

 

Quando os europeus chegaram ao continente americano, mais especificamente aqui à região onde hoje é o Brasil, eles encontraram comunidades no litoral que falavam dialetos de um idioma comum que depois seria chamado de tupi.

Em um primeiro momento, essa língua foi chamada de língua brasílica e algumas vezes até foi empregado o termo língua geral. Essa língua brasílica se estendia por toda a costa do país, desde mais ou menos São Vicente até o norte do território, na região da Costa do Salgado, entre Maranhão e Pará. Entrava também na foz do rio Amazonas, foz do rio Tocantins, e na região de São Paulo também, pelo rio Tietê.

O idioma foi aprendido pelos portugueses que foram chegando ao Brasil, os colonos, e foram usados nas primeiras vilas e povoações brasileiras. Nos extremos do território colonial português, ou seja, na Amazônia, e ao sul, na região de São Paulo, elas deram origem a línguas gerais. Línguas que se espalharam por um território vasto e começaram a ser faladas por europeus – portugueses e de outras nacionalidades –, indígenas de outras etnias e africanos. Não só na costa.

Depois essa língua foi utilizada pela ação catequética. Os missionários sistematizaram gramáticas da língua brasílica, assim como vocabulários dessa língua. Essa língua ao longo da costa apresentava variações dialetais, mas foi de certa forma sistematizada [em uma versão geral] pelos jesuítas. Eles fizeram um trabalho muito interessante do ponto de vista linguístico.

A disseminação (dessa versão sistematizada) coube à fala cotidiana nos aldeamentos catequéticos (aldeias organizadas pelos jesuítas para converter indígenas ao cristianismo), nas vilas, no trato com os colonos que falavam o tupi também. E aí a língua geral foi se distanciando um pouco daquele tupi antigo, da língua étnica de um povo, passando a ser falada por várias etnias diferentes, diferenciando-se um pouco tipologicamente daquele tupi antigo. Em outras palavras, a adoção da língua geral nos aldeamentos fez com que ela se tornasse uma língua supra étnica.

 

Como a proibição do nheengatu pela corte portuguesa, em 1795, afetou a língua?

 

Mesmo com a proibição, a língua continuou se disseminando. Ela já tinha ganhado muita força aqui na Amazônia, e era muito difícil mudar essa realidade com um decreto.

Em meados do século XIX, por volta de 1850, já num período em que o [idioma] português começava a entrar na Amazônia e tomar o lugar da língua geral, algumas pessoas começaram a sistematizar gramáticas, coletar lendas e escrevê-las em nheengatu. E é nesse período que vai surgir o nome nheengatu, que significa língua boa.

A gente vê as pessoas chamando de nheengatu a língua geral paulista, mas isso não seria correto. A língua geral paulista – também de base tupi –, no período em que surge o nome nheengatu, já possui pouquíssimos falantes, se é que possuía. Os registros que a gente conhece da língua geral paulista são todos anteriores a esse período.

Nheengatu, portanto, seria um nome da língua geral amazônica a partir de 1850. Então essa língua vai acumulando nomes. Tupi, língua geral, nheengatu… Hoje você pode chamar tanto de língua geral, quanto de nheengatu ou de tupi, mas não dá para chamar de nheengatu a língua geral do século XVIII, por exemplo –, já que ela não tinha esse nome nessa época e sofreu alterações entre esse período e o fim do século XIX.

 

Como sabemos se o nheengatu falado hoje se difere das primeiras variações do idioma?

 

O nheengatu de hoje ainda se compara ao nheengatu do começo do século XIX, quando propriamente se utiliza o termo nheengatu. Mas as diferenças são perceptíveis, sim, tanto na pronúncia quanto na sintaxe. Sobretudo hoje há cada vez mais empréstimos da língua portuguesa.

Ao mesmo tempo, algumas palavras foram sendo esquecidas e alguns termos só são lembrados pelos mais velhos [mas não é uma diferença significativa]. Se a gente voltar ao século XVII e ao século XVIII, a gente vai ver diferenças bem maiores entre a língua geral falada ao longo desses séculos e a falada hoje.

 

É verdade que os sons do nheengatu influenciaram os fonemas do português brasileiro?

 

Ainda falta um estudo sobre isso. Em um primeiro momento, falando da região amazônica, eu vejo mais uma influência do português na pronúncia do nheengatu do que o contrário. Mas isso é uma primeira impressão. Pode haver, sim, alguma influência da língua geral na fonética da língua portuguesa falada aqui na região.

Em alguns locais aqui da Amazônia, eu sei que os ribeirinhos pronunciam palavras [em português] com o som de O como U. Isso pode eventualmente ser alguma influência da língua geral, já que a distinção entre O e U foi sendo mitigada em algumas variações [do nheengatu].

 

Quantos falantes de nheengatu ainda existem e onde estão concentrados? Há regiões e grupos que falam o idioma no dia a dia?

 

Não há informações muito precisas sobre o número de falantes. Eu já vi estimativas entre 6 e 10 mil, mas há outras que estimam 20 mil. Eu acredito que seria algo na faixa de 10 mil. Hoje a maior parte dos falantes do nheengatu está aqui no rio Negro, no estado do Amazonas, sobretudo no município de São Gabriel da Cachoeira, onde a língua foi co-oficializada no ano de 2002. Aqui, a língua é usada cotidianamente e ensinada nas escolas.

Há outros falantes em outras regiões, nos rios Andirá e Marau, também na fronteira com o Pará e em direção aos territórios da Venezuela e Colômbia. Mas a maioria dos falantes nesse caso é mais velha, são poucas as crianças que falam nheengatu – algumas até entendem, mas não falam. Em algumas dessas áreas há projetos de fortalecimento da língua e resgate do idioma.

 

Que tipo de idioma é o nheengatu? Ao que ele se assemelha?

 

O nheengatu como idioma é muito próximo histórica e linguisticamente do guarani paraguaio. A própria língua geral paulista seria uma língua irmã da língua geral amazônica.

 

Existem palavras do nheengatu presentes no nosso vocabulário cotidiano?

 

No nosso vocabulário cotidiano, há várias palavras emprestadas do tupi, de vários estágios [da língua tupi e da colonização portuguesa]. Aqui na Amazônia, por exemplo, você vai ouvir [no português] as palavras curumin [menino], cunhã [mulher], cunhatã [moça], Paraná [afluente, alça de um rio].

Na fauna e na flora, quase todos os nomes que usamos vêm [da língua geral]. Igarapé, tatu, arara, tamanduá, tucumã, açaí, bacaba… Tudo isso são palavras tomadas do nheengatu – mais especificamente de seus antecedentes históricos.

Você tem até sufixos: em manauara, tapajoara, marajoara o -uara é um sufixo nheengatu que indica gentílico. O sufixo -arana que a gente vê em algumas frutas – umburana, cajarana – significa aquilo que parece mas não é, algo próximo a falso, parecido com, e é um sufixo que já passou para língua portuguesa aqui na Amazônia.

 

Há produção de literatura e arte em nheengatu?

 

O nheengatu foi e continua sendo uma língua de expressão oral.

Há alguns materiais escritos na língua, mas eu diria que é o começo de uma literatura no idioma, ainda é algo que está muito no começo. Tem crescido o interesse das pessoas de escrever e ler no idioma.

Existem músicas nheengatu, desde os séculos passados, como, por exemplo, canções de ninar, de dar banho nas crianças, essas mais tradicionais. E além disso há também canções que são novas e bandas que cantam em nheengatu: a banda do sr. Mario Piara, o sr. Ademarzinho da Gaita, forró cantado em nheengatu…

 

Qual a maior dificuldade em estudar – e lutar pela valorização e preservação – de um idioma como o nheengatu?

 

Um idioma que é falado dentro de um país com quase 200 milhões de falantes de outra língua sofre muita pressão, como qualquer idioma minoritário (LINK artigo idiomas minoritários) que tem só alguns milhares de falantes. O português tem um prestígio maior, durante muito tempo foi tida como uma língua de cultura, de progresso. É a língua que está na televisão, uma língua que já é escrita há muito tempo.

Hoje tem havido um pouco mais de orgulho de pessoas que falam outros idiomas. Ainda há vergonha, mas pelo relato das pessoas antigamente, havia muito mais vergonha. O próprio mundo onde o nheengatu era falado durante séculos está sendo muito alterado. São Gabriel virou uma cidade, isso a partir da década de 1970. Então as pessoas vão habitar um mundo em que a língua delas nem possui nomes para as várias coisas que integram a vida urbana, o que muitas vezes acaba facilitando um certo abandono do idioma.

 

Dá para estudar o nheengatu on-line? Quais os recursos disponíveis de forma gratuita pra aprender essa língua?

 

No livro chamado O Selvagem, do general Couto de Magalhães, de 1876, há um método de ensino do nheengatu, e há também narrativas que foram escritas em nheengatu e traduzidas para o português. Há o Poranduba Amazonense, livro de Barbosa Rodrigues, um botânico carioca que morou muito tempo aqui no Amazonas, que faz uma coleta de lendas e cantigas na língua, o vocabulário [sistematizado pelo] padre jesuíta Manuel Seixas… todos esses materiais são encontrados em PDF para download na internet.

Atualmente, eu diria que o livro do professor Eduardo Navarro apresenta um método para aprendizado de tupi e está disponível na internet. Eu estou trabalhando em um dicionário novo do nheengatu, que também será disponibilizado na internet.

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