A influência da língua árabe no espanhol

O espanhol moderno tem mais de 4 mil palavras com origem árabe, herança cultural muçulmana deixada na Peninsula Ibérica por quase 800 anos.
lingua arabe
Ilustrado por Luise Mézel

Uma das muitas línguas românicas da família indo-europeia – como o francês, o italiano, o português e o romeno –, o espanhol tem o segundo maior número de falantes nativos no mundo. Os 437 milhões de hispanohablantes estão atrás apenas dos quase 1,3 bilhão de indivíduos que utilizam alguma variação do chinês para se comunicar. Mas superam os 372 milhões que adotam o inglês como primeira língua.

Ao todo, o espanhol é a língua oficial de 20 países (a maioria deles nas Américas) e Porto Rico. Outros locais, como partes do Marrocos, Gibraltar, Andorra e Filipinas, também o utilizam.

Apesar de a vertente moderna do idioma ter suas raízes no século IX no dialeto castelhano da Cantábria, ao redor da cidade de Burgos, hoje norte da Espanha, a língua espanhola possui grande influência do… árabe.

Segundo Rafael Lapesa, filólogo, historiador da língua espanhola e ex-diretor da Real Academia Española, cerca de 4 mil palavras do idioma têm origem no árabe! “O elemento árabe foi, depois do latim, o mais importante do vocabulário espanhol até o século XVI”, argumentou no livro História de la lengua española (1981).

Mas como a língua árabe teve tanta influência no espanhol?

Ela veio com a ocupação muçulmana árabe de grande parte da Península Ibérica entre os anos de 711 e 1492.

A língua árabe, uma presença longa

Durante os quase 800 anos de presença, o território que hoje corresponde à Espanha, era bem multicultural, com seguidores do Cristianismo, Islã e Judaísmo, segundo a BBC.

Em 711, forças muçulmanas chegaram ao território espanhol, ganhando o controle da península em apenas sete anos e derrubando Don Rodrigo, do Reino Visigodo que governou a região por cerca de três séculos. 

Com isso, a Espanha  foi islamizada, nomeada Al-Andalus e adotou a língua árabe como idioma oficial e grande parte de sua cultura.

“O árabe agia como um superestrato do românico andaluz e como um apêndice dos outros românicos peninsulares. Havia muitos que dominavam as duas formas linguísticas: Al-Andalus era uma sociedade bilíngue pelo menos até o século XI ou XII”, explicou Elena Toro Lillo, ex-professora de Língua Espanhola na Universidade de Alicante, neste artigo, disponível na Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes.

De acordo com Lillo, o fim da sociedade “hispanogoda” espalhou os falantes românicos, que “evoluíram em situações completamente novas”. Ainda assim, “continuou-se com o latim de Mérida, Hispalis [hoje Sevilla], Córdoba ou Tarragona, mas foi uma linguagem coloquial, sem padronização e fragmentada.”

Desta forma, nasceram “enclaves de resistência” na área asturiana e dos Pirineus, para onde migraram refugiados da aristocracia espanhola e cristãos “que não desejavam permanecer em Al-Andalus”. Em lugares como Oviedo, León, Burgos e Barcelona se desenvolveram “novos modos linguísticos” que se espalharam pelo país quando a reconquista cristã começou, destaca Lillo.

Al-Andalus experimentava uma intensa dominação cultural do árabe coloquial, mas a área conquistada dividia espaço com o mozárabe, “a variedade linguística românica [hispânica]” falada no país, “especialmente até o final do século XI, não só pelos cristãos que permaneceram em território muçulmano, mas também pelos muladíes [locais convertidos ao Islã] e, em menor escala, pela população conquistadora”, diz Lillo. O dialeto tinha muitos elementos emprestados do árabe.

Esse bilinguismo durou ao menos até o século XI, havendo uma grande quantidade de arabismos no românico hispânico. Ao passo em que o território da Espanha foi sendo reconquistado pelos cristãos, o dialeto castelhano espalhou-se para o centro do país.

É complexo obter um conhecimento mais detalhado sobre o mozárabe, explica Lillo, devido à falta de documentação. “Podemos caracterizá-lo graças às características que são deduzidas de diferentes fontes: glossários latino-árabes ou hispano-arábicos, tratados de medicina ou botânica e restos literários.” Segundo ela, também não é simples especificar qual influência o mozárabe poderia ter sobre as outras línguas peninsulares. “Embora o mozárabe pareça compartilhar certas características com outros dialetos, as fronteiras linguísticas da Península foram marcadas pela expansão dos reinos cristãos”, diz. A língua desapareceu após a reconquista cristã.

Por volta do século XI, o castelhano chegou às proximidades de Madrid e Toledo. No fim do século XV, com a fusão dos reinos de Castela e Leão com os de Aragão, tornou-se a língua oficial da Espanha.

O fim da ocupação árabe muçulmana ocorreu em 1492, com a tomada de Granada pelos cristãos.

A Espanha mantém hoje outras línguas regionais, como o galego (muito similar ao português) e o catalão.

O fato é que a ocupação muçulmana não deixou só uma herança linguística, mas também cultural na Península Ibérica. Os conquistadores construíram palácios, mesquitas, minaretes e fortalezas que estão entre os mais exuberantes e singulares da Europa. 

Em Toledo, por exemplo, a Cristo de la Luz é a única mesquita das 10 que existiram na cidade na época da ocupação. Convertido em uma igreja nos dias atuais, o prédio era conhecido como Mezquita Bab-al-Mardum. Ele fica perto da Puerta del Sol, área onde muçulmanos ricos viviam.

Outro destaque da arquitetura árabe na Espanha é a magnífica Alhambra: uma cidade-palácio (com sete palácios internos) e uma fortaleza, com dois quilômetros de muralhas e 23 torres. Há também o Alcazaba, um forte dentro da fortaleza.

Arabismos no espanhol

A ocupação árabe teve grande impacto na sociedade espanhola. Os muçulmanos, por exemplo, revolucionaram o sistema agrícola do país. “Quando chegaram à Península, eles encontraram uma agricultura romana conservada praticamente sem variação pelos visigodos, cujos elementos principais eram os cereais (trigo, painço e cevada), algumas hortaliças (que se limitavam praticamente a nabos, cebolas, alhos e repolhos) e outros produtos importantes como a videira e a oliveira. Também havia diversas árvores frutíferas, entre as quais predominava a macieira”, explica Camilo Álvarez de Morales, ex-diretor da Escola de Estudos Árabes (CSIC), em Granada, em “Agrónomos Andalusíes y Sus Legados”, capítulo do livro La herencia árabe en la agricultura y el bienestar de Occidente.

Segundo Morales, os muçulmanos precisaram de algum tempo para se organizar. Depois, começaram a consolidar a agricultura com base em textos/pesquisas de origem oriental, latina e mozárabe. Desta forma, criaram técnicas inovadoras de nivelamento e preparo da terra, irrigação, como eliminar pragas e guardar os produtos. Faziam ainda experimentos para desenvolver melhores colheitas. 

Os muçulmanos introduziram também novos plantios na Península Ibérica, entre elas cana-de-açúcar, algodão, arroz, grão-de-bico, alface, açafrão, melão, pepino, laranjas, limoeiros, acelga e alcachofra. Logo, houve um aumento significativo das variedades de verduras, hortaliças e frutas na Espanha. 

Essa influência externa na agricultura está refletida até hoje em diversas palavras do vocabulário hispânico: azafrán, azahar, azucenas, algodón, alerce, ajorca, aljibe, alberca, albaricoque, limón, acelga e alcachofas são de origem árabe.

Azafrán, por exemplo, vem do árabe hispânico azza’farán e do árabe clássico za’farān, segundo o dicionário da Real Academia Española (uma excelente plataforma para estudar a origem das palavras no idioma). A pronúncia em espanhol é muito similar àquela em árabe (apenas omite-se o primeiro “a”). Essa palavra também é parecida no português: açafrão.  

Outro caso de semelhança entre árabe, espanhol e português é azúcar, cuja origem vem do árabe hispânico assúkkar e do árabe clássico sukkar. A pronúncia hispânica e portuguesa é bem próxima, enquanto no árabe não se existe o “a” e o “s” tem som de “z”.

Conforme destacam Ahmed Ounane, professor de espanhol da Universidade de Orán (Argélia), e Sadek Khechab, professor de Letras Árabes da Universidade de Medea (Argélia), outras áreas do espanhol também possuem diversos arabismos: contexto militar (aljaba, aceifas, almófar, atalaya, zaga, alcazabas e alazán), âmbito doméstico (azulejo, alcuzcuz, alborga, arrabal, jofaina, almohada) e terminologia científica (algoritmo, álcali, álgebra, cifra, alquimia).

De acordo com Lillo, outro arabismo comum é a fusão do al à frente de vários substantivos do espanhol, o que permite utilizá-los com os artigos el e la (la almohada, el alhelí, el albarán). 

No árabe, o al é um artigo definido não independente da palavra que define. Ou seja, vem sempre como um prefixo de um adjetivo ou substantivo. Há apenas uma forma deste artigo. Sendo assim, não existe uma variante feminina ou masculina, explica o Instituto Árabe Libanês.

No espanhol, o al é usado quando a preposição a é seguida pelo artigo el, produzindo assim o artigo al. O al não deve ser usado quando o el faz parte de um nome próprio. Por exemplo: “El avión despegó del aeropuerto de El Cairo”.

O árabe deixou ainda o sufixo i para formar gentílicos (ceutí, marroquí, yemení) ou substantivos/adjetivos (jabalí, maravedí, muladí, baladí) e as interjeições hala, ojalá, guay e ya.

Outras semelhanças com o português

Assim como o espanhol, o português foi influenciado pela língua árabe. E há uma pequena intersecção entre essas três línguas!

Essas palavras são escritas e pronunciadas quase da mesma maneira em todos esses idiomas: blusa (espanhol e português) e bloosa (árabe), camisa (espanhol e português) e kamis (árabe), guitarra (espanhol e português) e qithara (árabe), aceite (espanhol) e azeite (português) e zayt (árabe), música (espanhol e português) e moseka (árabe).

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